terça-feira, 3 de março de 2009

O FORA E O DENTRO DO CORPO-OBRA

“Outrem é quem fabrica os corpos com os elementos, os objetos com os corpos, assim como fabrica seu próprio semblante, com os mundos que exprime.” Michel Tournier

; quando vi JAYME pela primeira vez eu não podia ver seu rosto, mas eu tinha certeza, que ali dentro havia uma expressão de êxtase...a perspectiva de ver sem ser visto....uma espécie de antipanoptismo (O olho que tudo vê...sem ser visto) estava instaurada..o homem convertido em obra...a obra convertida em signo...mas - enquanto tal - é pura exterioridade...e na hipertrofia da imagem sobra o efeito de véu de ferro...um homem nú...exposto fora da galeria...trinta anos dentro de uma segunda pele...era sobretudo uma revolta e mais que isso um revide (pré)histórico...um desejo anárquico contra os valores instituídos...uma resistente inadequação-inquietude dos esquemas formais da arte contemporânea...e ainda assim...um outro espaço gestado para a arte na contemporaneidade...o fora-íntimo...a corporeidade a céu aberto...uma guerra entre o "dentro" e "fora"...no limiar, expressava o paradoxo do ser...ser dentro...ser de dentro...sedento por um fora...era o Sujeito-objeto dissipado ao sabor dos ventos no cotidiano artístico modelizado...Quando vi essa FYGURA pela primeira vez nos idos dos anos 80 (e nessa época...é preciso dizer...não entendia os paradigmas e os contra-modelos de inspiração ético-estética) me assustei...hoje percebo que para ser um artista é preciso se fazer um corpo...um corpo que extrapole o organismo...um corpo experimentando as intensidades de uma reinvenção vital...uma forma-conceito singular de subjetivação...um outrem aberto para mundos (im)possíveis...uma anti-estrutura do campo perceptivo-sensitivo..um não-abstrato real...um corpo presentificado performaticamente...construído-desconstruído nos laboratórios de uma UZYNA-MÁQUINA DE GUERRA...um corpo- arte estranho...uma aparência oposta e contrária ao mundo das aparências...com o qual sempre esteve (problematicamente) (des)ligado...seu ritual é de anti-produção...acordar perifericamente, levantar obra, andar para o centro, pensar o trajeto, escrever uma poética, correr atrás do “combustível’...produzir um corpo...continuar obra...entregar-se ao fascínio da ausência de tempo (é impossível saber a idade de uma máquina)...fora do relógio, dentro da ausência...uma crise da arte extensiva a todo o espaço cultural...aí começa a inevitável pergunta: isto é arte? Não...a arte é que é isto!... “Entre a fome, a miséria, a guerra e a do , eu acho as minhas próprias razões...o espírito expõe seus sentimentos buscando no escuro um pouco de luz...com molduras de farpas reluzentes...o espírito expõe a dor do amor a arte”...é dessa experiência que extraímos uma imagem-movimento...uma imagem para além da imagem...uma engrenagem livre... corpo-escrita...sobre o qual a morte desenha os contornos da sua permanência...a
transgressão desse ser-evento é o que serve de magnetismo para o cinema-olho...é o que nos atrai e o diferencia dos demais artistas...quando abandona o bom senso e o senso comum...ele acaba por “olhar para fora com um grande olhar animal...” e isso só ele pode ver...os olhos mudam de direção e essa viagem é o outro lado...e o outro lado é o acontecimental de não viver desviando...mas direcionado para dentro...JAYME é uma ilimitada periferia (des)centralizada...um cérebro que é uma cidade...uma cidade-cérebro melhor dizendo...um ninho de ratos...um subterrâneo de formigas e aranhas...um enxame de abelhas...uma multiplicidade incontrolável em que se encontra um outra ordem...não mais a do homem e a do Estado...uma multiplicidade do FORA-DENTRO...a sede da infinita proliferação disjuntiva...travessia cósmica...uma arquitetura labiríntica...paleta sensorial da sobre(super)vivência do tumulto de um mundo anômalo e feroz...a morte-vida sempre o acompanhou diante da ambição do semelhante....e esse espírito dominado pelo primitivo...de uma perseverança que tateia as inconstâncias da miséria...de uma vontade traduzida em angústia da pobreza...é também um abandono ao fora das impotências sociais...é também o dentro onde a consciência cessa de ser consciência ...universo móvel-fixo...energia cósmica e libidinal...placas imperturbáveis de idéias-práxis...engenharia rígida...cérebro-patrimônio-corpo-histórico da humanidade...corpo-tumba que passa por palácios, fábricas, asilos, escolas, siderúrgicas, cemitério, feiras, sanatórios, prisões, por vermes, vizinhos, por agressões físicas...e depois de ter passado pelo exército...e por uma gráfica...acaba por chegar a um espaço-tempo puramente afirmativo: o seu movimento pelas margens...o seu mergulho no infinito do impensado...a sua navegação nas ondas do devir...a sua dobragem ao limiar da potência...certamente o torna um instrumento vibrátil...no qual a vida é sempre uma eterna e infinda invenção...de início um sentido manifestamente liberatório da arte, um íntimo informalizável...por fim...um non-sense vanguardista...carregando os traços das lutas populares centenárias num único corpo...essa é a lógica dos seus sentidos...é ele próprio uma luta dentro-fora dos mercados simbólicos...concentrado, imperturbável... uma pele em carne viva...uma vida em pele de ferro...o sangue escorrendo sem ser visto...as veias abertas de uma América latrina...cheia de merdas e expressões bizarras que são repetidamente vociferadas na oralidade maquínica do obra-diferença...donde a ação desafiadora dessa performance de três décadas...suas mutações anorgânicas...é nada mais que um rosto fora de cena, de lugar, de sentido...rostidade zero...na mais contraditória das imagens...jorrando no seu campo de batalha...flores e armas de uma tragédia transformada em obra de arte...ao tempo em que é um adeus às obras primas...uma adeus a galeria...uma adeus...às Belas Artes...esse é o seu artifício...uma obra paripatética...isto é, um ARTEfício que perambula...pés-tanque de guerra e paz...por meio do qual enfrenta a morte cotidiana...por isso a angústia é necessária para os seus procedimentos...para o seu plano de composição...sem ela, morrer seria fácil...e é justamente da tragicidade que nasce o êxtase...assim como todo objeto de êxtase é criado pela por esses artifícios...a experiência desse artista-obra é uma experiência de morte...o terror, o sofrimento, a morbidez...dita de dentro para fora..THEMORB..é o que assegura a sua paz(ciência) laboriosa...o seu sacrifício visa o sagrado...É uma forma de experiência com o sagrado...com o “espírito”...sob a tortura do peso das farpas...ele parece sempre extasiado...explodindo, excedendo os muros de sua volumetria paradoxal...a cada passo fora de seu lugar interior...aguça ao extremo o problema de nossas próprias dimensões do dentro...e na intimidade...sempre gargalha alto...uma risada como quem diz: “aqui dentro eu estou vivo... lá fora é só a morte”...hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi hi!!!
Texto: Fábio Rocha

Fotos: Inailton Pinheiro

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